- Tá ouvindo?
- O que?
- Meu coração tá batendo esquisito.
- Esquisito como? Deixa ver...
Ela encostou a orelha no meu peito e ficou muito quieta. Dez segundos, vinte, vinte e três.
- Tá batendo igual ao meu.
- Não sei, tá estranho, acho que meu pulmão não tá acompanhando.
- Sei lá... pra mim tá normal. Ih, começou a chover...
- É. Será que eu vou morrer?
- Vai.
- ?
- Ué, um dia vai. Eu também vou. Vamos todos. Aliás, já estamos.
Eu sempre me assustava com o humor estranho que ela assumia de vez em quando. Nunca ia me acostumar aos mil jeitos que ela tinha de dizer, fazer e sentir as coisas.
- O que te deu?
- Nada, vontade de tomar banho de chuva.
- Mas tá frio.
- Aham. Por isso não vou. Posso pegar uma pneumonia e morrer.
Era pior do que eu pensava. Agora tinha encanado no assunto. Continuou:
- Se eu morresse agora, ia ser bem triste né?
- Não só agora...
- Mas agora mais, novinha assim. E nem fiz um monte de coisas que eu queria ainda. Nem que eu tivesse cem anos, acho...
Ficou num silêncio tão profundo que fiquei com vontade de nunca ter começado aquele assunto. Eu sentia falta da moleca alegre que ela era quando ficava desse jeito. Mudei o rumo.
- Já viu essa mancha que apareceu no teto?
- Onde?
- Aquela ali... parece um elefante, viu?
- Pra mim parece uma nuvem.
- Nuvem?
- Claro. É igual a uma nuvem.
- Não, menina... é um elefante, olha lá. De onde você tirou nuvem?
- É uma nuvem, mas em forma de elefante.
Olhou pra mim e sorriu. E eu sorri pra ela. Pouco importavam os batimentos, a vida era uma nuvem em forma de elefante.
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Pra dizer oi
É claro que tem todo o resto que vem depois.
Mas antes disso tem o começo.
Tem que começar de algum jeito. Tem o primeiro beijo, o primeiro gesto, o primeiro abraço, o primeiro perfume, o primeiro sorriso. Tem o primeiro olhar.
E aí?
E a sensação de que a barriga caiu num buraco e o ar travou na garganta?
E a delícia do medo da imensidão de tudo isso?
E a perna travada no chão que não obedece à vontade de correr e tocar?
E os minutos travados no relógio do tempo todo em volta que faz durar o instante pra sempre?
E os olhares cruzados no meio do caminho que as pernas não fazem?
E o sorriso retido, tão lento e tão dominador de todo o resto?
E a demora da boca que não sabe se cala ou se grita?
E a revolta das mãos que se espremem tentando fazer acordar?
E os abraços suspensos no ar?
E o oi?
O oi, onde fica? Como é que se diz? Cadê as vogais? Como é que se junta? A voz sai por onde? Cadê a coragem? Como é que se faz?
É claro que tem todo o resto que vem depois.
Mas antes disso tem o começo vagando no espaço daquilo que chega na hora.
E fica pra sempre, como se sempre voltasse a acontecer e estivesse acontecendo agora, de novo e de novo...
E está.
Mas antes disso tem o começo.
Tem que começar de algum jeito. Tem o primeiro beijo, o primeiro gesto, o primeiro abraço, o primeiro perfume, o primeiro sorriso. Tem o primeiro olhar.
E aí?
E a sensação de que a barriga caiu num buraco e o ar travou na garganta?
E a delícia do medo da imensidão de tudo isso?
E a perna travada no chão que não obedece à vontade de correr e tocar?
E os minutos travados no relógio do tempo todo em volta que faz durar o instante pra sempre?
E os olhares cruzados no meio do caminho que as pernas não fazem?
E o sorriso retido, tão lento e tão dominador de todo o resto?
E a demora da boca que não sabe se cala ou se grita?
E a revolta das mãos que se espremem tentando fazer acordar?
E os abraços suspensos no ar?
E o oi?
O oi, onde fica? Como é que se diz? Cadê as vogais? Como é que se junta? A voz sai por onde? Cadê a coragem? Como é que se faz?
É claro que tem todo o resto que vem depois.
Mas antes disso tem o começo vagando no espaço daquilo que chega na hora.
E fica pra sempre, como se sempre voltasse a acontecer e estivesse acontecendo agora, de novo e de novo...
E está.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Feliz
É bom isso de alegria.
Parece uma música saindo da alma da gente e dançando em volta de tudo, como casais que dançam valsa em uma festa black tie.
A gente começa a achar que é isso aí mesmo, um dia depois do outro, um dia a gente chega lá.
E não é? Não é assim que as coisas são o tempo todo?
Claro que tem dias que o céu tá escuro demais e o mundo parece um imenso clichê tipo um aeroporto lotado porque não tem teto.
Mas, na maior parte do tempo, não é que eu to sorrindo?!
Na maior parte do tempo, não é que dá pra aguentar sem perceber e viver sem notar?!
Trocar o lençol da cama que vai deixar de ser minha me dá uma felicidade tão plena que eu preciso sorrir.
Acordar passando mal tão cedinho pra ir trabalhar em uma coisa que me desgasta é tão engraçado que só sorrindo.
O banho na água do chuveiro queimado dói tanto na pele que olha... se eu não sorrir...
Sujar os dedos com mostarda não é bom demais?
Chutar a mesinha da sala não faz parte?
E quando a caneta falha, e quando a ligação cai, e quando o trânsito para, e quando o salto quebra, e quando se esquece a chave, e quando a noite é uma droga, e quando o banco tá lotado, e quando o tempo não passa, e quando não tem o shampoo que se quer, e quando a internet pifa, e quando o dinheiro acaba, e quando a sacola rasga, e quando se cai da escada, e quando se pega gripe, e quando se odeia a vizinha, e quando chove na hora de ir pra casa, e quando acaba a luz, e quando se fica em casa em plena sexta à noite, e quando se perde o fio da meada, não é engraçado? Não dá vontade de rir? Não é uma alegria só essa droga toda que a gente chama de vida?
É bom isso de alegria.
Qualquer avião no céu e piada cansada vira um filme.
Parece quando a gente acha a água do mar fria e depois que mergulha descobre que estava perfeita.
Parece que todos os medos da gente sumiram e a gente vai sorrir pra sempre, sempre, sempre.
Assusta, porque a gente tem medo de acabar.
E, porque dá medo, a gente fica esperando o fim, o céu escuro, o aeroporto lotado de gente cansada.
E, porque a gente espera o céu escuro, não consegue gostar do sol.
Mas se isso de alegria é tão bom, será que não vale a pena arriscar a chuva no final?
Parece uma música saindo da alma da gente e dançando em volta de tudo, como casais que dançam valsa em uma festa black tie.
A gente começa a achar que é isso aí mesmo, um dia depois do outro, um dia a gente chega lá.
E não é? Não é assim que as coisas são o tempo todo?
Claro que tem dias que o céu tá escuro demais e o mundo parece um imenso clichê tipo um aeroporto lotado porque não tem teto.
Mas, na maior parte do tempo, não é que eu to sorrindo?!
Na maior parte do tempo, não é que dá pra aguentar sem perceber e viver sem notar?!
Trocar o lençol da cama que vai deixar de ser minha me dá uma felicidade tão plena que eu preciso sorrir.
Acordar passando mal tão cedinho pra ir trabalhar em uma coisa que me desgasta é tão engraçado que só sorrindo.
O banho na água do chuveiro queimado dói tanto na pele que olha... se eu não sorrir...
Sujar os dedos com mostarda não é bom demais?
Chutar a mesinha da sala não faz parte?
E quando a caneta falha, e quando a ligação cai, e quando o trânsito para, e quando o salto quebra, e quando se esquece a chave, e quando a noite é uma droga, e quando o banco tá lotado, e quando o tempo não passa, e quando não tem o shampoo que se quer, e quando a internet pifa, e quando o dinheiro acaba, e quando a sacola rasga, e quando se cai da escada, e quando se pega gripe, e quando se odeia a vizinha, e quando chove na hora de ir pra casa, e quando acaba a luz, e quando se fica em casa em plena sexta à noite, e quando se perde o fio da meada, não é engraçado? Não dá vontade de rir? Não é uma alegria só essa droga toda que a gente chama de vida?
É bom isso de alegria.
Qualquer avião no céu e piada cansada vira um filme.
Parece quando a gente acha a água do mar fria e depois que mergulha descobre que estava perfeita.
Parece que todos os medos da gente sumiram e a gente vai sorrir pra sempre, sempre, sempre.
Assusta, porque a gente tem medo de acabar.
E, porque dá medo, a gente fica esperando o fim, o céu escuro, o aeroporto lotado de gente cansada.
E, porque a gente espera o céu escuro, não consegue gostar do sol.
Mas se isso de alegria é tão bom, será que não vale a pena arriscar a chuva no final?
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Três
O carro deslizava pelas ruas tão decoradas que a gente tinha tempo de ficar lembrando e rindo e, sabe... tava tão bom!
Tinha Oasis tocando no rádio, vento quente entrando pela janela e uma porção de sorrisos e afetos desses que nasceram com a gente.
How many special people change?
How many lives are living strange?
A gente gritava um pouco, mas acompanhava a letra certinho. Eram os três ali. Nossas dores, nossas discussões, as partes tristes de um amor maior. E o desenho sábado de manhã, os campeonatos de Super Mario, as letras das músicas que a gente trocava, os brigadeiros que a gente marcava na padaria da esquina, as bandeiras estendidas na sala em dia de jogo, tudo. Era isso tudo ali, que nunca mais seria igual e por isso mesmo seria eterno.
Cause people believe that they're gonna get away for the summer!
A vida bem que tentou, jogou um pra cada lado do mundo, gostando de coisas iguais só às vezes. Mas sempre vai ter churrasco em casa, a grade do jardim de inverno que não sei como nunca caiu, chimarrão, as bexigas coloridas cheias d'água, cantar em viagem e mudar letras de músicas. Sem contar o amor maior do mundo.
But you and I, we live and die
The world's still spinning round
We don't know why
Why, why, WI-FI (pra não perder o costume)
*Deni e Nana, que me mostram sempre a dor e a delícia de não ser única.
Tinha Oasis tocando no rádio, vento quente entrando pela janela e uma porção de sorrisos e afetos desses que nasceram com a gente.
How many special people change?
How many lives are living strange?
A gente gritava um pouco, mas acompanhava a letra certinho. Eram os três ali. Nossas dores, nossas discussões, as partes tristes de um amor maior. E o desenho sábado de manhã, os campeonatos de Super Mario, as letras das músicas que a gente trocava, os brigadeiros que a gente marcava na padaria da esquina, as bandeiras estendidas na sala em dia de jogo, tudo. Era isso tudo ali, que nunca mais seria igual e por isso mesmo seria eterno.
Cause people believe that they're gonna get away for the summer!
A vida bem que tentou, jogou um pra cada lado do mundo, gostando de coisas iguais só às vezes. Mas sempre vai ter churrasco em casa, a grade do jardim de inverno que não sei como nunca caiu, chimarrão, as bexigas coloridas cheias d'água, cantar em viagem e mudar letras de músicas. Sem contar o amor maior do mundo.
But you and I, we live and die
The world's still spinning round
We don't know why
Why, why, WI-FI (pra não perder o costume)
*Deni e Nana, que me mostram sempre a dor e a delícia de não ser única.
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Página 1
Abri os olhos.
A claridade excessiva do sábado de manhã fez arder minhas pupilas em processo de dilatação e tive que fechá-los de novo. Num meio segundo de um meio pensamento de lembrança que me ocorreu então.
De quando eu pensava sem poder sentir a língua tocando a minha e aí fechava os olhos e quase podia sentir só de pensar... era solitário, sem deixar de ser bom.
Depois mudou e ali, se eu esticasse o braço, sabia que ia acabar encontrando suas costas no caminho dos meus dedos. Mas ele tinha dormido tarde e eu não estava cabendo em mim só de lembrar de tudo aquilo. Nunca mais longe, era uma promessa, mas precisei me levantar para conseguir respirar normalmente.
O chão gelado encontrou meus pés e senti um tremor percorrer meu corpo, a partir do tornozelo e em direção à cervical. Bom sinal, eu ainda podia sentir o frio, eu ainda estava ali.
Caminhei em direção à porta e saí do quarto sem olhar para trás. Eu estava completamente decidida a não acordar ninguém e permaneci firme.
A sala já estava absurdamente clara àquela hora da manhã. Ali, entre o sofá e a janela, estavam todas as nossas escolhas de uma vida inteira. Não havia mais a falta no meio das almofadas coloridas, não havia mais noites vazias entre o quarto bagunçado e a cozinha cheirosa. Tínhamos preenchido tudo com dedicação e risadas e discussões e abraços e danças e toques.
E frases.
Olhei para elas. Na parede da sala, centenas de letras me olhavam. Cada uma estava lá por alguma razão especial; cada uma havia sido cuidadosamente escolhida para nos lembrar o que era mesmo essencial.
Bem no centro, grande, Clarice Lispector nos ditava a mais importante, aquela em que pautamos nossos dias todos, "Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar".
Pisquei, segurando uma lágrima que ameaçava escorrer, e sorri ao invés disso. Eu me lembrava perfeitamente bem do dia em que decidimos que aquela era nossa frase.
As cicatrizes todas que já carregávamos antes e ainda doíam apesar do tempo e do esquecimento e de tudo. Todas abertas frente a frente e a gente apontava: essa é daquela vez que... e essa outra foi quando...
E elas iam se fechando todo dia um pouco, entendendo que fariam sempre parte de nós, mas só como lembrança do nada assolador que nunca mais estaria, que nunca mais caberia.
Eu sendo eu. E ele sendo ele. Vasto, intenso, maluco e vai durar. Dura mais a cada dia.
Não conseguindo mais segurar meus pés, corri de volta para o quarto e pulei na cama.
-Eu sou eu - disse para sua orelha, num sussurro.
Ele se virou para mim, a claridade fazendo arder suas pupilas em processo de dilatação e brilhando seu sorriso de dentes ainda sem escovar.
-E eu sou eu - respondeu, me puxando para perto e me colocando no quentinho do seu antebraço esquerdo - é vasto.
-Vai durar.
Estávamos seguros. O mundo podia terminar de amanhecer.
domingo, 5 de setembro de 2010
Dentro
Morar dentro de mim.
É assim que eu me sinto, descobri.
E aí essas coisas todas de falar sozinha, cantarolar, chorar sem motivo aparente e o medo de cair de mim mesma que me dá ficaram perfeitamente compreensíveis.
As pessoas são criadas para fazer parte do mundo como ele é, então terminam a faculdade, arrumam um emprego e se encaixam nas fórmulas que o mundo tem. Pitágoras, Euler, Bhaskara, né? Lembro vagamente de algo assim, mas nunca aprendi as fórmulas, então talvez seja isso.
A droga da matemática que eu dispensei de propósito e, como não usei no vestibular, achei que não ia fazer diferença em mais nada na minha vida, é isso então?
Eu desaprendi de morar no mundo e resolvi morar dentro de mim.
Sabe, nem sempre a gente se cabe e nem sempre a gente se basta. Mas vai aprendendo a preencher os espaços que sobram com o que encontrar pelo caminho: tristezas antigas, saudades passadas, a esperança de amanhã, mania de comer pasta de dente, ficar repetindo aquela música o dia todo, cruzar os dedos dos pés pra dormir, cortar o cabelo, focar na respiração, dois minutos sem se movimentar com a cabeça completamente embaixo do chuveiro ouvindo só a água, manter as unhas feitas, lembrar do colégio e, sem perceber, o mundo dentro de você ficou imensamente limitado ao mundo dentro de você.
Não é triste, pelo contrário. É bom saber que se é parte da pequena porcentagem da população que aguenta o próprio peso. A maioria das pessoas simplesmente precisa das outras pra suportar dores e alegrias e todo o resto. É bom saber que se pode contar com a própria opinião, com a própria companhia, com a própria crítica, com o próprio colo. É bom saber que se pode sorrir para si. É bom saber que não se vai fraquejar só porque não há outra mão em que segurar.
É bom pensar que se pode ir ao cinema sozinho, tomar um café enquanto lê um livro sem tornar isso melancólico, sentar numa praça e respirar sem a impressão da falta espremendo tudo em volta.
Mas fica essa sensação de que vou cair de mim. Fica essa sensação de que em algum momento vou escorregar por algum lugar compreendido entre meu esôfago e meu diafragma e sumir para sempre.
Não é triste, pelo contrário. É bom saber que há uma saída de mim em algum lugar. É muito difícil encarar outras realidades quando a gente se acostuma com a nossa companhia segura, ainda que instável.
Mas eu não to nem aí pra isso, eu que me dane. A soma dos quadrados dos catetos é igual à hipotenusa, decora, vai. Decora como faz pra calcular os espaços todos entre as gentes que você ficou evitando e agora grita sem parar. Faz favor de aprender Bhaskara que você vai precisar. O mundo precisa de Bhaskara! Pesquisa lá como se divide os sentimentos pelo tempo que se tem e os corações que se emprestam, igual todo mundo faz. Joga no Google o tal do Euler e decora. Para, por favor, de ficar adiando isso tudo. Para, por favor, de se prender aos detalhes de você e esquecer do resto.
Por favor, por favor, por favor.
Se tudo isso for muito pra agora reaprende, pelo menos, como é que se anda de mãos dadas, como é que se compartilha o sofá no sábado à noite, como é que se recebe cafuné, como é que se pede ajuda com o chuveiro que não esquenta, como é que se conta como foi seu dia, como é que se divide o que você sente. E, por favor, se esforça pra sair daí. Morar dentro de mim é bom e foi importante, eu descobri muito mais coisas do que a maioria vai saber sobre si mesmo a vida inteira, mas eu não posso perder todo o resto de tudo então, por favor, colabora...
O grande problema de ficar sozinho não é a solidão, a falta de abraço, de companhia, de vozes, de uma mão pra segurar. Isso é totalmente suportável.
O grande problema de ficar sozinho é que a gente se acostuma. E isso sim, é triste de doer.
As pessoas são criadas para fazer parte do mundo como ele é, então terminam a faculdade, arrumam um emprego e se encaixam nas fórmulas que o mundo tem. Pitágoras, Euler, Bhaskara, né? Lembro vagamente de algo assim, mas nunca aprendi as fórmulas, então talvez seja isso.
A droga da matemática que eu dispensei de propósito e, como não usei no vestibular, achei que não ia fazer diferença em mais nada na minha vida, é isso então?
Eu desaprendi de morar no mundo e resolvi morar dentro de mim.
Sabe, nem sempre a gente se cabe e nem sempre a gente se basta. Mas vai aprendendo a preencher os espaços que sobram com o que encontrar pelo caminho: tristezas antigas, saudades passadas, a esperança de amanhã, mania de comer pasta de dente, ficar repetindo aquela música o dia todo, cruzar os dedos dos pés pra dormir, cortar o cabelo, focar na respiração, dois minutos sem se movimentar com a cabeça completamente embaixo do chuveiro ouvindo só a água, manter as unhas feitas, lembrar do colégio e, sem perceber, o mundo dentro de você ficou imensamente limitado ao mundo dentro de você.
Não é triste, pelo contrário. É bom saber que se é parte da pequena porcentagem da população que aguenta o próprio peso. A maioria das pessoas simplesmente precisa das outras pra suportar dores e alegrias e todo o resto. É bom saber que se pode contar com a própria opinião, com a própria companhia, com a própria crítica, com o próprio colo. É bom saber que se pode sorrir para si. É bom saber que não se vai fraquejar só porque não há outra mão em que segurar.
É bom pensar que se pode ir ao cinema sozinho, tomar um café enquanto lê um livro sem tornar isso melancólico, sentar numa praça e respirar sem a impressão da falta espremendo tudo em volta.
Mas fica essa sensação de que vou cair de mim. Fica essa sensação de que em algum momento vou escorregar por algum lugar compreendido entre meu esôfago e meu diafragma e sumir para sempre.
Não é triste, pelo contrário. É bom saber que há uma saída de mim em algum lugar. É muito difícil encarar outras realidades quando a gente se acostuma com a nossa companhia segura, ainda que instável.
Mas eu não to nem aí pra isso, eu que me dane. A soma dos quadrados dos catetos é igual à hipotenusa, decora, vai. Decora como faz pra calcular os espaços todos entre as gentes que você ficou evitando e agora grita sem parar. Faz favor de aprender Bhaskara que você vai precisar. O mundo precisa de Bhaskara! Pesquisa lá como se divide os sentimentos pelo tempo que se tem e os corações que se emprestam, igual todo mundo faz. Joga no Google o tal do Euler e decora. Para, por favor, de ficar adiando isso tudo. Para, por favor, de se prender aos detalhes de você e esquecer do resto.
Por favor, por favor, por favor.
Se tudo isso for muito pra agora reaprende, pelo menos, como é que se anda de mãos dadas, como é que se compartilha o sofá no sábado à noite, como é que se recebe cafuné, como é que se pede ajuda com o chuveiro que não esquenta, como é que se conta como foi seu dia, como é que se divide o que você sente. E, por favor, se esforça pra sair daí. Morar dentro de mim é bom e foi importante, eu descobri muito mais coisas do que a maioria vai saber sobre si mesmo a vida inteira, mas eu não posso perder todo o resto de tudo então, por favor, colabora...
O grande problema de ficar sozinho não é a solidão, a falta de abraço, de companhia, de vozes, de uma mão pra segurar. Isso é totalmente suportável.
O grande problema de ficar sozinho é que a gente se acostuma. E isso sim, é triste de doer.
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