sábado, 30 de outubro de 2010

Chuva

Choveu o dia todo, não tem mais nenhuma poeira na rua que possa voar com o vento e parar no meu quarto. Só você.
E eu, que fico todo o tempo pedindo, todo o tempo rezando, todo o tempo com a garganta entalada com todo o ar que tem em volta.
Eu fico torcendo, por favor, goste de mim. Goste de mim só um pouquinho.
Eu fico tão bonitinha quando estou brincando de ser feliz, olha só. E todo mundo me acha tão inteligente e tão capaz e tão mais que tudo isso e eu nem consigo suportar a ideia de ser outra pessoa, eu sou tão eu, mesmo achando meu pescoço feio e não gostando do meu pé e querendo um pouco mais de peito e menos de cintura, mesmo tentando o tempo todo me equilibrar nesse mundo que não é o meu e sabendo que eu não caibo aqui e fazendo um esforço imenso pra fingir que são normais as coisas que eu penso e falo e sinto e gosto e mesmo não conseguindo explicar pra ninguém todo o buraco na alma que eu tenho e não fecha, mesmo assim eu gosto tanto de mim que eu devo merecer que você goste também.
Eu passei o dia todo andando do quarto pra sala e da sala pro quarto, tentando achar uma posição em que minha cabeça doesse menos e o coração acelerasse um pouco. Não existe. Fiquei olhando a chuva pela janela tanto tempo, tanto tempo batendo com ela no vidro das janelas de casa, não consegui e tive que derrubar minhas chuvas também.
Minha cama está acostumada a ouvir os gritos que eu abafo nas almofadas quase toda noite e eu nem grito de verdade, é só pra não enlouquecer.
Se eu parar de gritar nas minhas almofadas vou acabar ouvindo todas gritarem comigo e vou ficar mais maluca que sempre, só pra provar que eu posso, eu posso ser ainda pior.
Ontem, quando tinha sol, eu vi uma mocinha saindo do carro com uma caixa na mão e na caixa tinha um laço de cetim e ela usava um vestido verde e uma sapatilha e tinha o cabelo tão loiro natural mesmo que fosse pintado. E ela estava com o cabelo preso e batendo no meio das costas e flutuava na ponta dos pés sorrindo porque levava uma caixa com um laço de cetim pra alguém. E eu nunca vou ser assim, entende?
Ela não precisa implorar atenção pra ninguém, tão linda, tão levinha, tão sem pelos nas pernas e pesos na cabeça, ela não precisa.
Enquanto eu olho meu pé e penso que preciso fazer a unha e me dá preguiça, e me dá desespero, e me dá uma coisa que se eu tivesse um jeito, se eu tivesse uma gotinha de esperança, se eu tivesse a coragem. E me dá ânsia de todas as coisas e falta o ar, por que é que eu sou tão nojenta comigo mesma? Por que é que eu não dou meia dúzia de gritos com as minhas almofadas e aí durmo sem ficar me jogando do terraço do prédio? Enquanto eu sinto isso tudo e sinto você, eu acho que eu podia ser tão legal com a gente.
Por favor, goste de mim, goste de mim só um pouquinho. Pouca gente se aguenta como eu me aguento e isso deve valer alguma coisa. Eu me suporto tanto, mesmo louca, mesmo tão pesada, mesmo assim.
Eu nunca vou ser a mocinha de vestido verde e caixa com laço de cetim, mas meu jeans velho e meu cabelo bagunçado queriam muito você por perto.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Esgotar

É preciso esgotar amores antigos.
Aqueles que parecem lindos somente pela impossibilidade de sobreviverem em um ambiente com condições normais de temperatura e pressão. Funcionam muito bem com dois personagens, mas esquecem as falas quando misturados às demais partes da peça.
E não dá, sabe?
Esses amores explosivos são muito loucos e muito lindos, mas não servem pra grande coisa.
São como um restinho de perfume... sempre fica algum no fundo do frasco e a gente vai deixando ali na prateleira, esperando o dia em que vai conseguir usar o final.
Só que não usa. A única função daquele frasco com duas gotas por usar é te fazer pensar como era bom o perfume que ficava ali dentro.
Você já até usa outros perfumes, mas fica sempre lembrando das duas gotas no frasco quase vazio.
E o que é que se faz? Nada. Não há o que fazer... esgotar o restinho de perfume do frasco não é função nossa. Só o sol batendo nele todo dia e o tempo passando uma hora depois da outra e o vento assobiando na janela mesmo.
Assim os amores. Vira e mexe fica a impressão de que não foi tudo, de que há ainda o que insistir, o que usar, o que sorrir das coisas que ficaram pra trás. Mas não há. Restos de sentimentos demoram a apodrecer, é assim mesmo. Depois que apodrecem, ainda assim, leva tempo até parar de incomodar aquele cheiro podre de raiva, mágoa e tristeza que fica ali.
Amores antigos e loucos e lindos levam tempo até morrerem de vez. Por muito tempo nos dão a impressão da possibilidade, por muito tempo nos trazem lembranças inventadas de coisas imaginadas que não foram, por muito tempo nos fazem pensar que era melhor antes.
Mas não era e justamente por isso não está mais.
Gostamos do que nos faz bem, nos apaixonamos pelo que encanta, mantemos vivo o que vale a pena. O resto é lembrança besta do que não existiu de verdade, o resto é sofrimento desnecessário, o resto é revirar o coração pra sentir que ele continua batendo. O resto é desfibrilador pra alma e só.
Até o dia em que acaba mesmo. Até o dia em que não sobra mágoa nem lágrima nem nada. Nada, nada, nada.
Até o dia em que você olha pro frasco e vê que o restinho de perfume finalmente evaporou.

P.S.: Aí se joga o frasco fora e se sorri.