terça-feira, 7 de setembro de 2010

Página 1

Abri os olhos.
A claridade excessiva do sábado de manhã fez arder minhas pupilas em processo de dilatação e tive que fechá-los de novo. Num meio segundo de um meio pensamento de lembrança que me ocorreu então.
De quando eu pensava sem poder sentir a língua tocando a minha e aí fechava os olhos e quase podia sentir só de pensar... era solitário, sem deixar de ser bom.
Depois mudou e ali, se eu esticasse o braço, sabia que ia acabar encontrando suas costas no caminho dos meus dedos. Mas ele tinha dormido tarde e eu não estava cabendo em mim só de lembrar de tudo aquilo. Nunca mais longe, era uma promessa, mas precisei me levantar para conseguir respirar normalmente.
O chão gelado encontrou meus pés e senti um tremor percorrer meu corpo, a partir do tornozelo e em direção à cervical. Bom sinal, eu ainda podia sentir o frio, eu ainda estava ali.
Caminhei em direção à porta e saí do quarto sem olhar para trás. Eu estava completamente decidida a não acordar ninguém e permaneci firme.
A sala já estava absurdamente clara àquela hora da manhã. Ali, entre o sofá e a janela, estavam todas as nossas escolhas de uma vida inteira. Não havia mais a falta no meio das almofadas coloridas, não havia mais noites vazias entre o quarto bagunçado e a cozinha cheirosa. Tínhamos preenchido tudo com dedicação e risadas e discussões e abraços e danças e toques.
E frases.
Olhei para elas. Na parede da sala, centenas de letras me olhavam. Cada uma estava lá por alguma razão especial; cada uma havia sido cuidadosamente escolhida para nos lembrar o que era mesmo essencial.
Bem no centro, grande, Clarice Lispector nos ditava a mais importante, aquela em que pautamos nossos dias todos, "Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar".
Pisquei, segurando uma lágrima que ameaçava escorrer, e sorri ao invés disso. Eu me lembrava perfeitamente bem do dia em que decidimos que aquela era nossa frase.
As cicatrizes todas que já carregávamos antes e ainda doíam apesar do tempo e do esquecimento e de tudo. Todas abertas frente a frente e a gente apontava: essa é daquela vez que... e essa outra foi quando...
E elas iam se fechando todo dia um pouco, entendendo que fariam sempre parte de nós, mas só como lembrança do nada assolador que nunca mais estaria, que nunca mais caberia.
Eu sendo eu. E ele sendo ele. Vasto, intenso, maluco e vai durar. Dura mais a cada dia.
Não conseguindo mais segurar meus pés, corri de volta para o quarto e pulei na cama.
-Eu sou eu - disse para sua orelha, num sussurro.
Ele se virou para mim, a claridade fazendo arder suas pupilas em processo de dilatação e brilhando seu sorriso de dentes ainda sem escovar.
-E eu sou eu - respondeu, me puxando para perto e me colocando no quentinho do seu antebraço esquerdo - é vasto.
-Vai durar.
Estávamos seguros. O mundo podia terminar de amanhecer.

2 comentários:

  1. Olha eu comecei a ler e adorei, pode já começando a postar a sequencia hein!!!!
    Adorei as descrições, a frase da Clarice Lispector(essa é fascinante) e a volta pro quarto.
    Esperarei o cap. 2.
    Bjs....

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  2. Tenho muito a aprender com vc...

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