sexta-feira, 23 de abril de 2010

Chá



Amar, meu bem, eu também amo.
Penso durante o dia e sonho à noite, como qualquer criatura normal.
Amar assim é pra ser fácil. Não precisa bater a cabeça, discordar, discutir, conviver com os defeitos, as vontades e as alegrias.
Nem com a minha tragédia que, de tão densa, já virou piada que me faz dar risada todo dia. Porque tenho trinta anos desde os dezesseis. Porque tive que aprender a confrontar a minha sorte e fazer dela pista de patinação. Botei até umas luzes pra ficar mais colorida.
Amar assim, até eu. Não precisa abrir mão das madrugadas com a TV, nem fazer almoço, pagar cinema, sair pra jantar, pegar na mão. Nem brigar por pasta de dente apertada em cima, fazer a cama de manhã, nem desfazer à noite. Igual à minha, que eu durmo em cima da colcha pra não ter que estender no outro dia, que eu durmo de um lado só pra não ter que guardar as roupas que estão do outro lado, que eu durmo tarde, se quiser.
Amar mentalmente, tapando o nariz antes de pular na água, eu já amava antes de saber o que era. Não tem que dançar com os pedaços não dados da outra pessoa, nem chegar na hora pra não levar bronca, nem desvendar seja lá o que for de pensamento.
Só que meus neurônios andam cansados de amar assim, então eu chutei todos eles pra fora. Onde se viu, ficar me incomodando a cabeça?! Justo a minha, que tem tanta coisa pra pensar?! Justo a minha, que acorda em português, atende o telefone em italiano, traduz em espanhol, canta em inglês e manda e-mail em francês?! Justo a minha, que eu mudo por fora pra ver se limpo por dentro?!
Sei que aí eu chutei todos pra fora e dei uma festa com uns convidados novos. Mas era tanta tranquilidade sem todos eles falando todo o tempo, que virou um chá da tarde.
E está assim... as únicas palavras ouvidas há dias têm a ver com passar o açúcar, providenciar mais bolo, esquentar o leite. Tem gente lá que até foi dar uma cochilada debaixo de uma amoreira que plantaram no jardim. Sempre gostei de amoreira. Sempre gostei de amora. Sempre gostei de amor.
Mas acontece que amor dá muito trabalho, amora mancha a roupa e amoreira é só essa coisa onde eu estico a rede e descanso.
Meus neurônios irritados não estão fazendo falta. Espero que eles demorem muito a voltar. E quanto a você, veja se não provoca os malditos!

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Sinestesia

(Trecho de um ensaio do que um dia - ou nunca - virá a ser um livro).
Para acompanhar, caso eu tenha moral para recomendar alguma coisa:


O frescor da noite de outono entrava pela janela entreaberta do apartamento e dançava pelos cabelos longos. Ela começou a prendê-los no alto da cabeça com uma caneta, enquanto tentava colocar alguma coisa no papel que lembrasse - ainda que de longe - a matéria que o professor havia passado no dia anterior.
Já fazia horas que ela estava acompanhada de uma pilha de livros sem, contudo, ir além de duas meras páginas, que só não haviam sido jogadas fora porque ela não conseguira nada melhor.
Olhou para o despertador, verificando o horário. 3h15. Pensou em ir dormir, mas não estava ainda com sono, então resolveu ir para a cozinha e preparar alguma coisa para comer. O trabalho teria que esperar.
Saiu pela porta que levava ao corredor, passou pela sala e entrou na cozinha. Ao bater a mão no interruptor, lembrou-se que a luz estava queimada. Abriu a geladeira para enxergar um copo no armário.
Preparou um saduíche e já voltava para o quarto quando o telefone tocou.
3h15 da manhã?! - pensou - quem está me ligando a essa hora?
Seu coração disparou. Imediatamente um mal estar atingiu a boca do estômago e quase a fez vomitar. Parecia que algum fantasma havia lhe dado um soco.
Era um pressentimento, intuição, sexto sentido, ou seja lá como se chama quando o coração bate no estômago e os dois caem em um buraco no meio da barriga. Apesar de toda a impossibilidade de que aquele pensamento fosse real, ela soube exatamente quem estava do outro lado da linha.
Deveria atender? O que dizer depois de tanto tempo? - O telefone não parava de tocar e ela permanecia relutante em atender, congelada no meio da sala, segurando o sanduíche e o copo de leite, com os cabelos presos no alto da cabeça e o pijama de malha, enquanto o vento daquela noite de outono soprava pelo apartamento silencioso. Incapaz de mover um só músculo, com a respiração suspensa e o coração quase saindo pela boca, ela apenas esperou.
Finalmente o aparelho parou de tocar e o ar voltou a circular à sua volta. Retomando o olhar, que estivera todo o tempo pregado no telefone, ela caminhou de volta para o quarto.

domingo, 4 de abril de 2010

Silêncio

É mais difícil à noite - é preciso tocar o silêncio. Ele fica à espreita durante todo o dia, aguardando este momento: além das pessoas, das luzes, das imagens; mas, à noite, vem forte, pesado, grande, espremendo com força o que encontrar pela frente.
Aparentemente sem ter o que fazer com os pensamentos que rodavam sem parar, ela encostou a cabeça na parede enquanto observava o céu. As estrelas estavam ocultas por nuvens que, ela lembrou, pareciam aquelas que rodavam com seus pensamentos.
Ela respirou fundo, tentando filtrar o ar ligeiramente frio que entrava por suas narinas e, com ele, dissipar a névoa interna. Desistiu.
Quando o silêncio se torna pesado demais, o jeito é abraçá-lo, agarrar-se a ele e aconchegar-se em seu colo. E o ar ligeiramente frio em seus pulmões quase ajudava.

Para ler ouvindo: