segunda-feira, 23 de julho de 2012

Na veia

*Texto originalmente publicado na Gazeta Maringá. http://www.gazetamaringa.com.br/blog/pancadas-isoladas/


Era o terceiro comprimido em menos de duas horas. Fiquei pensando em qual ponto, nos últimos oito anos, meu cérebro deixou de funcionar direito. Relaxadamente, respirei fundo - a química começava a fazer efeito - enquanto o dedo corria a agenda do celular.
Os rostos dos caras sem nome sussurravam de dentro de mim. Adorei você! Posso te ligar amanhã? Vem comigo no churrasco. A gente marca de novo. Como você é ótima! Vai fazer o que no fim de semana? Uma pessoa como você só fica sozinha porque quer. Ah, não to sendo falso. Você se controla demais. Elogio quantas vezes eu quiser. A gente nunca sabe quando você está sendo irônica. Muita gente já te disse isso?
Eu dizendo sou louca. Sou louca, sou louca, sou louca. Todos aqueles jogos e os sorrisos e os copos e as piscadas e os papos e me vê mais um desses que eu adorei e aí a gente dança, a gente sente, a gente olha, a gente aguenta mais cinco minutos ou seis ou uma vida.
Você não parece louca.
Mas sou. Minha cabeça corre demais.
O dedo parou e pressionei o botão verde. De todas as decisões horrorosas pelo menos essa eu ainda não tinha estragado, um número para momentos em que uma cartela inteira seria pouco. Não se exige compreensão numa hora dessas. Qualquer um é melhor que todos aqueles excessos que esperam detrás das possibilidades de uma mesa de bar. Qualquer um é melhor do que gente que fuma e bebe e se droga sem perceber, pra ter coragem de buscar a única coisa que todo mundo quer e ninguém consegue pedir.
Às vezes parecia, mas eu não era melhor que todos eles. Só me aguentava melhor dentro de mim. Só tinha números possíveis e vinte caixas do desacelerador cerebral. Alguém atendeu do outro lado, enquanto os Beatles me pediam bem alto das caixas de som "Oh, darling! Please, believe me!"
Eu acredito. Em vocês, nos comprimidos e nos números da minha agenda. Todo mundo tem seus jeitos de fugir disso que chamam de amor.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Papo de mulher

-Eu sempre tento abrir a porta do McDonald's pro lado errado. É kármico.
-Dezessete Reais, senhora.
-E essa, agora... já chamam a gente de senhora, reparou?
-Gente, tá cheio isso aqui!
-Antes eu era uma pessoa normal, queria constituir família, ter filhos e um emprego fixo.
-Quero mudar de área, talvez eu volte pra faculdade, antes você era menos eu.
-Não aguento ser empregada dos outros, já te disse que nem penso mais em casamento?
-Eu simplesmente não consigo ligar o desembaçador do carro, é um caos!
-Tá bem, mas é aquela coisa... nunca mais foi igual.
-E a fulana, tem visto?
-Mas aquele dia foi tão rápido, nem deu pra colocar a conversa em dia. Precisamos marcar mais vezes.
-Ah, desliguei na cara. Você sabe que eu não tenho paciência pra telefone.
-Abriu um bar novo, você viu?
-Pra voltar pra faculdade a essa altura, gente! Mas é o jeito... quero mudar de área, comentei?
-Porque era uma delícia passar a tarde não fazendo nada especificamente...
-Mas eu ri sozinha igual uma louca, precisava ver!
-Nossa, eu entendo que deve ser muito complicado isso. Já pensou em terapia?
-Quando eles chegaram eu nem notei, porque estava tomando o terceiro copo de Citrus. Não to bebendo, afe.
-Ah, ela sempre teve uma inclinação, né? A gente comentava isso já no século passado.
-Ridículo! Uma ceninha digna de folhetim velho, um absurdo.
-Semana passada. Quando vi, já estava dentro do hospital, veja bem. Uma dor, menina!
-Ai, gostou? Comprei naquela loja nova, um preço ótimo.
-Não to saindo com ninguém assim, direto.
-Casa na outra semana, quase caí pra trás! Diz que o vestido tá maravilhoso.
-E te mandou um abração, porque não te vê faz uma década e meia.
-Eles marcaram pro mês que vem, parece que não tinha possibilidade de ser antes disso.
-Ah, eu gosto quando a gente se encontra assim, é tão produtivo.
-É, pena que não dá tempo de falar de tudo...

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O quase e o que foi melhor porque deu errado

As coisas começaram a dar errado pra gente no meu segundo ano de faculdade - o que é chato, porque foi justamente quando elas começaram a dar certo pra gente.
Nos encontramos só duas vezes antes de ele deixar o que tinha e eu deixar o que tinha e foi assim que duramos duas semanas.
Jantamos em um lugar bacana com um casal de amigos meus, ele trocou o chuveiro do meu apartamento com mais três caras e nenhuma ideia de como se fazia isso, dividimos cigarros e conversas e garrafas de vinho em algumas madrugadas. Até que ele achou que o que tinha antes afinal era melhor e voltou atrás, depois de um sábado no cinema.
Quem me explicou porque ele não ligava nem aparecia depois de tudo foi uma amiga - e então eu aprendi que não posso obrigar ninguém a ficar comigo, mesmo que seja ótimo e bonito e mesmo que pareça a melhor coisa a se fazer.
Minha única reação, enquanto fazia a unha sentada no banquinho alto da sala, foi dizer: "Vou ficar bem logo, mas agora to confusa e tá doendo. Agora não me obrigue a entender."
Ele foi a coisa mais intensa que já me aconteceu. Enlouqueci e me curei depressa demais. Guardo com carinho aquelas duas semanas.
Eram coisas demais pra digerir e, embora eu tivesse engolido toda aquela areia sem uma gota d'água sem reclamar, levamos um ano e meio para voltar a conversar. Fingir de perto é bem mais difícil. O dono do bar perguntou: "É sua namorada?" - ele respondeu: "Era pra ser..." - e eu nunca mais esqueci a metade de um sorriso e a piscada que me dirigiu no fim da frase.
Em um universo ideal seríamos melhores amigos, a gente se sabe muito bem, tem visões bem parecidas do mundo e a mesma maneira de falar bobagem fazendo parecer a coisa mais relevante do universo. Pena que estragamos tudo antes.
Eu nunca tive vergonha de falar dele ou apresentá-lo pra quem quer que fosse. Uma vez ele até jantou comigo, minha mãe e meu padrasto e eu avisei antes: "Ele é esquisito", mas minha mãe adorou e achou que nós éramos tão parecidos, enquanto a gente já nem tinha ilusão de ter nada mais... eu sempre amei o nome de perfume, os papos sem sentido e o gosto musical incrível e sempre corei um pouco com o jeito dele dizer que me curte me chamando de "hot". Justo eu, que tenho 1,62m e conservo o mesmo corpo de quando tinha treze anos. Fora meu avô ele é a única pessoa que me chama de Carolina e eu não fico achando que fiz besteira. A gente já nem se fala tanto e mesmo assim ficou o maior carinho... dizem que é o mesmo carinho exato que ele tem por mim.
A gente já pode falar dos relacionamentos tortos que anda tendo por aí, cada um na sua, sem medo de machucar o outro. A gente já consegue sair e tomar um suco no shopping sem que nada aconteça. A gente já se convida pra eventos particulares sem que haja intenção. A gente cresceu muito desde o meu segundo ano de faculdade. Que bom.
Olha, definitivamente não sou aquela que te mandou mensagem dizendo que te amava depois do carnaval, até porque foi você mesmo quem me ensinou que paixões avassaladoras nem sempre são pra durar. Não deu tempo de amar você mas eu amo muito como a gente se ajeitou na vida um do outro, no final. E admiro sem fim o adulto interessantemente non-sense que você se tornou. Então as coisas passaram voando e meus dezessete se foram há tempos, junto com a minha ingenuidade. Você se cuida daí que eu me cuido daqui e a gente se encontra com mais meia dúzia pra rir do passado e tomar uma cerveja, quando der. Tudo isso não era declaração, nem carta, nem nada - e você entende, eu sei. Você sempre entende. Não tinha que ser como a gente queria só pra ser muito melhor, no final. Tudo isso era só pra você saber.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Uma semana e meia

Era a terceira garrafa d'água e o nó não descia pela garganta. Eu nunca resisto ao cheiro de problema, aí fica tudo complicado e difícil de desenrolar. Eu sempre insisto pra poder reclamar pra sempre do mundo.
Isso desde que o telefone não tocou e tive que discar eu mesma. Daí chocolate em cima da mesa, 500 filmes e nenhum no DVD, as fotos de tudo do passado e como eu voltei a ter doze anos de repente.
Tem gente que entra em casa e quer permissão pra sentar no sofá, pra olhar o quadro da parede, pra tomar água... e isso é tão incolor, inodoro, insípido e absurdo porque tem gente que entra e tira o sapato e senta na cama e escolhe o filme e quer ver e ler e saber e até tira a camisa quando sente calor sem, no entanto, parecer agressivo, como se tudo aquilo tivesse sempre sido natural e sempre existido. Uma invasão sem choque.
Por isso, mesmo depois das três garrafas d'água, já fazia mais de uma semana e a vontade de sair correndo não vinha. No lugar disso olhar o telefone "toca, toca, por favor, toca... toca pra eu não ser obrigada a me impedir de fazer primeiro".
Não vou ligar porque você disse. Eu só falo besteira, pode ligar, liga sim, liga sempre. Mas tudo que você escreveu a vida toda... isso era sobre o que? Girassóis. Mas parece tanto que era um amor enorme e infinito, e o outro? O outro era ficção científica. Sei não... e aquele? Licença poética, inspirado numa amiga. E esse? Esse escrevi pro meu pai. Tem certeza? Tenho, querido, tenho certeza, começou tudo agora. Minha vida é uma página inteira em branco, eu nunca escrevi nada de ninguém nem vou nunca mais. Mas se você disse que nunca antes. Eu sou louca, não liga. Não é pra ligar? É! Não liga só pra minha loucura. Você não parece louca, mas escreve sobre todo mundo. Então eu vou lá e escrevo sobre você, quer? Quero.
Mesmo sabendo que eu poderia falar bem mal, porque até o que é bom pra mim é ruim, tudo ficou doce como os três bombons me olhando de cima da escrivaninha, enquanto eu enlouquecia por conta da vasta lista de fatores contrários.
Esquece isso, a gente pode morrer amanhã. Não. Não assim, não com o cheiro que tem atrás do teu pescoço e com o meio-fio que é insuficiente pra mim. Amanhã eu vou acordar e colocar a blusa que usei hoje e o cheiro de trás do teu pescoço vai estar lá ainda, de modo que não vai dar pra morrer amanhã de jeito nenhum.
E aí você ri porque a minha ansiedade do futuro engole metade e meia do meu presente. Eu tenho medo porque gosto e eu mesma nunca gosto quando gostam, então sei que seu próximo passo é desistir, porque seria o meu próximo passo, se eu fosse você. É a impressão que você tem? É, parece que você inverteu meu cérebro. Mas não to correndo. Isso, não corre ainda, eu to te avisando porque tenho a mania imbecil de achar que é minha obrigação, não é que eu queira te assustar, entende?
E tenta entender também que é muito difícil eu ser assim como tenho sido. Não é minha essa coisa de responder ou mesmo mandar. Eu sei que está tudo muito à beira do abismo do resto da tua vida e até da minha, mas tenta gostar de mim mesmo assim. A gente não tem nada a ver um com o outro mas eu preciso que você goste de mim só um pouco, só mais cinco minutos. Quando você descobrir o que tá perdendo com isso eu prometo que não vou chorar ou ficar mais louca e até prometo deixar você ir, mas não corra antes, por favor, passe aqui de vez em quando, traga bombom ou só tuas orelhas e o olho castanho mais diferente do mundo. Fica um pouquinho mais.
Só hoje já foram três garrafas d'água e dois comprimidos, fora tudo mais que eu ingeri em todo o resto da minha vida, mas doses de coisas boas como você são as primeiras que tomo em anos.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Assalto

A gente tenta entender as diferenças sociais e o querer não satisfeito de roupas e aparelhos e fins de semana em família. A gente tenta entender a frustração de muitas vontades e muitos sonhos e entende que é tudo uma droga mesmo e que o tamanho dos problemas deles nem se compara ao tamanho dos problemas da gente. A gente tenta entender que eles queiram respeito, que queiram muito mais do que a vida inteira puderam ter, que queiram coisas que nem todo o dinheiro do mundo poderia comprar. A gente tenta entender as consequências sem tamanho de uma infância roubada pela sociedade, pelos próprios pais, pela violência.
A gente se esforça pra entender muita coisa, entende que esse imenso abismo social que os mantém afastados da gente é uma questão histórica e complexa e que junto com isso vem uma porção de universos menores e obscuros que a gente desconhece e até agradece por desconhecer. A gente tenta entender, também, porque a gente sabe que não tem culpa mas dá a própria bênção pra isso todos os dias, com nosso silêncio complacente.
Acontece que do lado de cá também tem gente. E tinha, de fato, quatro caras pensando na aula da manhã seguinte, pelo menos dois deles pensando no emprego dos fins de semana. Nenhum desses quatro caras conseguiu o que tem de graça ou sem esforço. A sorte, maior pra eles que pros outros, é claro, se encarregou de colocá-los em famílias mais ou menos estruturadas - e só. Daí pra frente cada um precisou encontrar a melhor forma de fazer as coisas darem certo. As oportunidades de desvio foram muitas, como para os outros.
A gente pode tentar, mas nunca vai entender os trinta segundos que separam o jogo na TV do terror dentro de casa, do susto, do tremor, do medo.
A gente nunca vai entender a arma apontada, a gente nunca vai entender essa coragem que, pra existir, precisa ameaçar. A gente pode entender todo o enredo que culminou ali, mas nunca, nunca vai entender o segundo e meio em que alguém decide entrar numa casa com uma arma, render quatro jovens, amarrá-los no banheiro, ameaçar e levar consigo tudo que encontrar, usando a adrenalina pra tentar aliviar o que nem drogas nem luta foram capazes sozinhas. A gente tenta entender que ali o encontro era entre quatro caras que puderam planejar suas vidas e outros quatro que a vida discriminou o tempo todo, mas pra gente - ou antes pra mim - ser bom ou mau continua sendo uma escolha, não uma consequência.
E então trocar as fechaduras da casa, vender o carro deixado pra trás, mudar pra um apartamento, trancar um pouco mais a própria existência e esperar que passe a sensação de que somos todos muito frágeis e vulneráveis.
O pior da violência não é o que ela leva, mas o que deixa.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Os iludidos

Eles todos parecem espertos, simpáticos e educados. Esse se formou um dia desses e olha só, já tem e faz e trabalha pro fulano de quem eu nunca ouvi falar mas tem um nome desses de gente que ganha dinheiro e dá bastante dinheiro pra quem ajuda também. O outro porque se criou com o pai e agora já pode continuar as coisas por si só, mesmo que não tenha muita certeza se quer isso ou viajar pra lugares inóspitos e tem o outro, que estudou e agora tá tentando, tá se esforçando e é tão espontâneo rindo e se expressando e tudo mais. Todo mundo adora, ri e telefona e que figura você é, eles todos parecem ótimos, geniais, queridos e bem merecedores da minha atenção e do meu tempo. Eles todos parecem muito com o genro que minha mãe queria ter, eles todos são rapazes que ligam no dia seguinte, enquanto eu sou a mocinha louca que mastiga o terceiro pedaço seguido de carne e não atende o telefone.
O drama maior da minha existência é que eu tenho uma preguiça enorme de me enfiar em relacionamentos a qualquer nível. Todo o sentimento cuspido e as festinhas juntos e presentes e saídas de casal, depois as discussões, as explicações e as pazes pra depois tudo de novo e me enfiar em um pacote de Sonho de Valsa e os status das redes sociais pra depois nada e voltar às minhas noites de piada com quem eu sei que tá sempre ali, de verdade, então pra que? Pra que, se eu nem choro no final?
É difícil de explicar, porque eu sempre odeio tudo em mim mas gosto dessa parte de mim mesma na sexta à noite bem tranquila rindo e tomando Coca em frente à TV. Consigo ser tão especial e gostar tanto de mim, de vez em quando, que seria bem injusto comigo querer que alguém fizesse parte disso. E seria bem injusto com todos esses caras tão ótimos porque, no segundo seguinte, eu volto a ser a escrota que ignora convites e desacredita de histórias lindas.
Assim meu melhor amigo pode continuar tentando me arrastar para os programas em que eu sempre encontro mais um futuro-ex-alguma coisa para, na semana seguinte, odiar tudo de novo e ficar enchendo porque o mais novo perfeito é tão querido e tão inteligente e tão a minha cara, mas tão a minha cara, que eu prefiro deixar pra lá. Não vale a pena desperdiçar uma quase história tão bacana assim.
Eles todos são sinceros e gostariam mesmo, mas só no primeiro mês, até caírem na real de que eu apenas sou louca de outro jeito. Não dá pra esperar um príncipe sendo o tipo de pessoa que eu sou. Esse trairia, o outro diria coisas que na verdade não pensa, o outro se anularia porque morre de medo de ficar sozinho, o outro criticaria demais, o outro se esconderia atrás da própria sinceridade e, como eu sempre acabo mentindo além do necessário, no fim teria parte da culpa também. É isso, o mundo é feio, eu não presto cem por cento e coisas de amor não são assim tão frequentes quanto eles todos fazem parecer e gostam de acreditar.
Eles todos estão convencidos de que até fazem porque são homens e tudo mais, mas só porque ainda não encontraram aquela que é diferente e que vai fazer seus cérebros deixarem de feder a podre e de pensar em todas as outras possibilidades do universo fora de uma relação estável. Enrolação pessoal. No fundo eles todos sabem que a única coisa que muda é a chata para quem eles inventam do outro lado da linha.
Eles todos têm ótimas referências para possíveis candidatas. Fizeram tudo na vida justamente para isso. Eles todos acreditam mesmo no amor, eu é que não. Deus me livre de ser a chata.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Em tempo

O celular toca, minha mãe avisa que meu avô vem almoçar no sábado. Há anos ele não vem almoçar no sábado, nem na sexta ou qualquer dia. Há anos ele simplesmente não. Não está, não liga, não vem, não fala, não dá notícia, não se importa. Há anos deixamos de nos importar também.
Mas eu tenho vontade de dizer umas coisas, sabe... olha, vô, eu gosto de um pouco de rock mas também amo MPB; e essa cicatriz aqui eu ganhei quando caí no banheiro depois do banho porque um idiota qualquer me deixou com a cabeça meio lenta; eu me formei mas nem gosto muito do curso que fiz; eu gosto mesmo é de escrever e tem gente que diz que escrevo até bem; meu gênio é igualzinho ao da minha mãe; eu sofro um monte porque fiquei velha cedo demais; só como bolo se for de chocolate e um dia vou perder o estômago de tanto tomar Coca-cola; meio que desanimei de beber e agora não bebo mesmo quase nada; às vezes eu rezo um pouco mas é tão pouco que a essa altura não tenho nenhum crédito com deus. Só que eu acredito, sabe... que existe uma porção de coisas boas esperando em algum lugar, na evolução das almas e que há alguém olhando todo esse absurdo do mundo e cuidando. Eu sei que to falando rápido e muito, mas é que são vinte e três anos, tente entender.
Quando meus pais se separaram e o pânico era horrível, fui parar no hospital um montão de vezes, eu achava que ia morrer, não é ridículo? Tinha bastante gente que estava comigo, vô. Vários amigos, meus irmãos, minha vó. Foi difícil pra burro mas olha a gente aqui e já se vão oito anos. Eu sou bem querida por um bocado de gente, embora meu jeito estourado tenha me proporcionado uns desafetos também. Não acerto meus relacionamentos e ainda to tentando acertar minha carreira, mas melhorei muito de um tempo pra cá. Dá pra notar né, mãe? Né, vó? Né, tia? Elas viram, elas estavam aqui todo esse tempo. E você?
Porque minhas lembranças de você se resumem ao doce de leite que você trazia do laticínio a toneladas quando eu era bem novinha, um tênis cinza que eu usei um monte e as vezes em que pediu pra me ver tocando teclado. Eu também não sei nada de você, não é chato? Eu queria poder te dar presente de aniversário, ligar pra contar as novidades, pedir tua opinião.
Tá lá, vô, na fita do meu aniversário de um ano, a gente não se desgrudava, minha mãe diz que você era louco por mim e então?
Então nada, você é uma pessoa à parte do resto da minha vida. Não temos uma foto juntos desde que eu tinha, sei lá, oito anos. Meu outro avô morreu, você sabe, e mesmo assim minhas fotos com ele vão bem além disso.
Eu não tenho nenhuma raiva de você, eu senti tua falta a vida toda, a gente se encontra e nem tem assunto de tanto que se desconhece e isso é bem triste, mas no fundo que bom que você veio almoçar com a gente. Você é bem importante pra mim, se quer saber. Um dia talvez eu até consiga te explicar tudo isso.
Minha vida é bem estranha e a tendência é que caras legais e importantes sumam dela, assim como você. Pra ser sincera já me acostumei e nem ligo muito mas é que, de todos os caras legais e importantes que desapareceram, você é o único que eu sempre quis ter de volta.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Molde

Na bolsa estavam apenas o celular, meu perfume e um chiclete. Eu comprei o presente na sexta mas não entreguei nem no sábado, estava complicado.
Esperei até as três para decidir se ia, cheguei atrasada e me enfiei no primeiro vão que encontrei livre. Não bebi, falei mal de dois ou três vestidos apenas e dancei até quase perder os pés, torcendo pra não acabar nunca aquilo de ser uma pessoa nova, que usa vestidos finos e salto miúdo enquanto se sente olhada pelos lados "como ela ficou diferente".
É bom destoar. Enquanto os outros discutiam as noites anteriores e lembravam coisas de longos anos e disfarçavam o grande absurdo de tudo no mundo segurando o copo e tiravam milhares de fotos do amor possível eu só me obrigava a conseguir equilibrar a verdade de ser quem sou sobre a sandália de cetim.
Os olhos ficaram bem maquiados pela leveza de quem não quer mais nada dessa vida além da própria vida animada no sábado à noite, a leveza de quem nem ia sair e nem faz questão nenhuma de ser amado ou desejado ou mesmo notado e pode ouvir a música e seguir o som sem se esconder, esperar ou convidar.
Foi bem fácil, ao contrário do que eu pensei, fazer de conta que pra mim tudo aquilo era normal e lindo e que eu estava à vontade segurando a bolsa em que não cabia quase nada.
Quem me viu, viu apenas a mocinha com o cabelo modelado com mousse e a pele queimadinha e o vestido não muito acima do joelho, a mocinha que não se importava em chegar sozinha e dar tchauzinho pra conhecidos e rezar um pouco e não usar vestido branco nem muito estampado e manter o salto até o fim. A mocinha que troca ideias intelectuais ou sentimentais segurando um copo d'água. Ninguém suspeitou que, naquela noite, a mocinha se sentia pela primeira vez na vida, uma pessoa digna de ser "um amor" pro mundo ou  só pra alguém.
Eu sorri bastante e nem me importei com cabelos que se desfaziam, maquiagens que se derretiam, imperfeições que se deixavam ver ou nomes trocados. Eu me apertei inteira e fui educada, simpática e discreta. Eu não sobrei, não faltei e nem fiquei sentindo faltas ou excessos de pessoas ou sentimentos. Eu queria caber sempre tão perfeitamente em mim.