quarta-feira, 4 de agosto de 2010

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Eu fiz o que minha mãe pediu a vida toda: me mexi. Fui atrás das coisas que eu tinha vontade. Fui atrás das coisas que eu não tinha vontade, mas tinha que fazer. Eu tenho um emprego "na minha área", embora eu não saiba o que isso acrescenta. E arrumei mais dez mil coisas para fazer e tentar passar o dia que insiste em não passar, todo dia, e tentar ganhar mais alguma coisa - não que eu pense que mereça. Comecei os tratamentos de saúde que há anos adiava, mesmo com os remédios arrancando meu estômago pela boca. Resolvi tentar de novo dar um jeito no meu pé, mesmo sabendo que não vai adiantar, de novo. Cortei o cabelo que eu não aguentava mais tão comprido. Fui ao dentista, mesmo sabendo que ele ia dizer que eu tenho algumas cáries, um dente que devia ter sido corrigido, mordida cruzada, umas obturações pra fazer e que eu não tenho uma boa escovação.
É isso. Eu tenho 22 anos batendo à minha porta, cinco idiomas, um diploma universitário pra enfeitar a parede, um bocado de amigos pra quem ligar, uma habilidade estranha com palavras, uma família perfeita pros meus padrões, alguém maravilhoso em quem pensar, pra quem correr, um body branco lindo de morrer que me deixa com o corpo da Juliana Paes, um certo gosto pra moda, coragem pra encarar quem grita comigo, vontade de uma vida que eu possa chamar de minha, um celular com a tela trincada e os olhos verdes em dia de sol, mas não tenho uma boa escovação.
E o pior é que eu sei.
Tento corrigir minha escovação há anos, mas morro de preguiça.
Cá, não se trata da sua escovação ruim. É você, entende? Você é que estraga comendo um monte de besteira, você é que não se limita e acaba digerindo coisas que não te dizem respeito.
É que você sai de casa de manhã querendo atropelar as horas, e aí elas correm de você, até eu correria.
É que você acha que o bombom no meio da tarde vai matar a fome que você nem sente, e bombom nenhum conserta a vida, gata. Não é comendo bombom, nem paçoca, nem tomando milk shake de ovomaltine do Bob's que as pessoas dão jeito nos problemas. Ninguém nunca conseguiu afogar nada em um copo de milk shake, por mais absurdamente largo que seja o canudo do Bob's.
É você, entende?
É que você arruma dez mil coisas pra fazer mas continua pensando em uma única. É que você ainda busca uma forma de não pensar sem matar o seu coração de uma vez por todas. É que você ainda não encontrou esse jeito e não percebeu que seu coração não vai morrer, eu não vou mais deixar. É só você parar de teimar em não abrir o paraquedas pra chegar no chão mais rápido. Abre o paraquedas aí, Cá.
Olha que bonito esse campo bem aí embaixo dos seus pés. Olha lá no horizonte e tenta ver além, imagina o que é que há... olha aquele rio passando ali do lado, encheu com a chuva de ontem, viu? Sim, dá até vontade de chorar. Pode chorar, Cá. É bonito demais mesmo tudo isso! Dá saudade de tudo que é tipo e aí não cabe mesmo no peito e você vai mesmo explodir se não chorar. Chora sim. Mas para logo, pra dar tempo de reparar naquela floresta que tem ali adiante e sentir medo. Medo é importante pra gente saber onde cair. Vê lá, que o sol tá terminando de nascer e ainda tem o dia todo pra você cair. E ele só dura vinte e quatro horas, meu bem, ainda que pareça mais. Vira aí, olha a estrada que ficou lá atrás. Você nunca se importou de andar por ela e ela tem tanta coisa bonita... para de olhar pra baixo, o chão uma hora chega. Tem um monte de gente querendo te levar pra lá e pra cá, antes de você cair. Vai com eles. Vai ver de novo tudo o que você já viu, repara melhor, tem sempre alguma coisa nova... eu sei que você quer o chão logo, mas o chão não vai sair de lá e uma hora você chega nele.
Não precisa parar de pensar, Cá, só tenta ver com outros olhos. Não precisa melhorar sua escovação, não é esse o problema e não é isso que vai te impedir. Eu to sempre aqui com você e já já vou te segurar lá embaixo também.

Aí eu acordo e sorrio. O tempo é o mesmo, afinal, e eu não preciso ter pressa, só preciso respirar.

2 comentários:

  1. Será que seu paraquedas aguenta vc e eu?! A cordinha do meu esta enroscada :/

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  2. Carolzinha...eu nem posso ficar comentando seus textos...pq acabo me repetindo sempre...são perfeitos...e como a gente se identifica...parabéns amiga...por esse dom maravilhoso...bjo

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