terça-feira, 6 de julho de 2010

Gostoso



Tudo que é proibido é mais gostoso.
Nem tudo. Andar na contramão pode fazer mal à saúde. Não parar na linha do trem, idem. Assim como ultrapassar em faixa contínua, fumar no posto de combustível, ultrapassar o limite de áreas de risco e provocar sua namorada no auge da TPM (bom, não é proibido, mas é bem perigoso também). O complicado sim, é sempre mais gostoso.
Gostoso!
Que nem tomar sorvete no parque domingo à tarde. Que nem dar risada sozinho, lembrando alguma coisa. Que nem camiseta velha na hora de dormir. Que nem cheiro de chuva. Que nem compartilhar piadas internas. Que nem prender vaga-lume na mão. Que nem perfume de lençol limpo. Que nem vinho no inverno. Que nem carta escrita à mão. Que nem dormir abraçado. Que nem achar dinheiro no bolso da calça. Que nem aquela bala em pó que estalava na língua e não existe mais. Que nem soprar semente de dente-de-leão. Que nem abraço de saudade. Que nem descobrir que você precisa de alguma coisa que não precisava antes.

*****

Era comum ela riscar o que escrevia. Cinco minutos e ela já não concordava mais consigo mesma.
Mas ele estava sempre tentando ver por cima dos ombros dela. Ela percebia e escondia. E riscava. E sorria. Ele ria.
Ficava tentando entender por que se lia nas linhas dela. Ficava pensando e ensaiando dizer o quanto queria concordar com as linhas que ela displicente e criminosamente riscava. Ficava olhando pra trás e querendo adivinhar onde raio estava ela até agora.
Ela nunca soube responder. Nunca soube de verdade onde estava; gostava de pensar no futuro, mas nunca teve muita certeza do presente. Achava sempre que devia estar em outro lugar.
Ele continuava perguntando. Ou tentava. Continuava imaginando desfechos interessantes pras coisas que ela dizia. Ela ria. Ele sorria.
Ela falava de portas com a mesma certeza que usava quando comentava sobre o tempo. Ele ficava ouvindo e pensando que raio de porta era essa e o que ela queria dizer com aquela conversa toda. Ele despistava e dizia que a porta estava sempre aberta, esperando alguém entrar. Ela falava de arrombamento. Ele achava mais interessante usar um grampo de cabelo. Ela achava mais charmoso, mas continuava esperando alguém entrar com porta e tudo.
Ela queria dizer o quanto achava estranho aquilo tudo. Contar o tempo em horas a mais nunca tinha sido costume, e agora era tão comum que ela nem sabia explicar. Ela respirava fundo e ficava dissertando sobre outras coisas, pra não ter que tocar no assunto e correr o risco de assustar as horas e delas começarem a passar em outro ritmo. Ela vivia fugindo das horas. Começava a falar da tal porta e não parava nunca mais, com medo de caber alguma observação (de si mesma) nos intervalos.
Ele queria dizer como se sentia quando ela riscava as palavras que pareciam tão importantes para ele. Ele queria dizer como se sentia riscado também.
Mas ela achava as palavras todas tão descartáveis. Ela dizia que eram só um monte de coisas tiradas de um dicionário.
Ele ria e continuava tentando enxergar enquanto ela continuava escrevendo e riscando.
Ela via e ajeitava o cabelo atrás da orelha e jogava todo pro lado, pra esconder os riscos. Ele pensava em fazer cócegas, mas sabia que aí nem ia querer ler mais nada. Porque rir era sempre a melhor parte. Eles paravam tudo pra rir. Tinha hora que nem todo o riso do mundo era o bastante. Tinha hora que o coração acelerava e aí eles riam. E concordavam: que situação!
Era tão bom desse jeito que eles até esqueciam as palavras, riscadas ou não. Porque tinha hora que rir era o único jeito de os dois se salvarem.
Que nem a vez que ele ficou olhando pra ela por trás da garrafa de cerveja e nenhum dos dois conseguia desviar o olhar, nem falar nada. Que nem aquele dia que ela tocou a campainha sem avisar e nenhum deles sabia o que dizer. Que nem quando os dois queriam falar ao mesmo tempo. Que nem quando eles começavam a falar bobagens e não conseguiam mais parar.
Mas eles eram importantes de uma maneira diferente. Aquela luta com o que tinham a dizer era só mais um jeito de se econtrarem.
Os dois sabiam disso, mas disfarçavam. Ele até queria dizer, mas não conseguia. Ela falava demais.

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