sexta-feira, 14 de maio de 2010

Aquele

Sabe, meus cremes têm um propósito. Eu não sou do tipo que sai por aí gastando o que não tem pra se sentir mais bonita. Há, sim, aquele cara de quem eu quero chamar a atenção. Ele existe, anda por aí, tem nome e sobrenome, tem lá seus medos e suas caraminholas, tem lá seu RG, sua cama e seu par de tênis preferido.
Ele finge que não percebe, mas sabe quando tropeça nas minhas cenas. Ele se atrapalha com as minhas palavras; e com as dele. Ele cai nos meus joguinhos, mesmo conhecendo todos eles.
Ele fala demais, às vezes. Às vezes fala sem pensar, às vezes pensa demais pra falar, às vezes cala demais.
Ele só não entende.
Não entende nada de mim, nada do que eu digo. Acho que ele nem ouve! Acho que ele me olha e pensa que me vê. Acho que ele finge que olha, pra não ficar chato. Às vezes ele até me beija no meio da frase, pra provar que não me ouviu.
A gente conversa, a gente ri, às vezes a gente chora. Às vezes ele vai comigo ao cinema e nem sabe, às vezes ele dorme do meu lado e não sente. Mas eu perdoo, porque sei que às vezes sou eu que faço assim.
Tem dias que ele some - deve ter dias que eu sumo também - e tem dias que não sai daqui! Fica aqui falando o dia todo, me sacudindo, mordendo minha orelha, não cala a boca, não para quieto, não vai embora.
No fim do dia ele me abraça e me deseja boa noite. Às vezes ele vai, às vezes fica me vendo dormir. Às vezes me acorda no meio da noite, pra tomar água com ele, deve ter medo do escuro. É que ele fica meio à sombra de tudo. Nunca aprendeu a sair de lá, ninguém nunca ensinou, o que dá um pouco de trabalho, porque nem sempre dá pra enxergar que ele está lá. Só de vez em quando é que ele se ilumina. Gosto tanto!
Se ele soubesse o quanto eu gosto, acho que faria mais vezes. Talvez eu devesse contar pra ele... como se adiantasse. Ele vai colocar o dedo no ouvido e gritar mais alto do que eu falo, igual criança. Ele sempre faz dessas. Acho graça, mas se eu der risada ele se irrita.
Eu também me irrito. Com essa mania de nunca estar quando eu preciso e se eu falo ele responde depois ignora. Com essa presença sem fim da sombra dele nos meus passos. Com essa ausência infinita que ele causa aqui, quando sai. Com as risadas dele no meio da noite, quando ele volta. Com a minha maldita mania de ficar queimando cérebro e de falar sozinha e deixar todo mundo achando que eu fiquei maluca de vez. Até ele. E de querer mostrar pra todo mundo que eu sou minha melhor companhia. E de ficar enchendo a cabeça dele com os meus conselhos e as minhas convicções, pra ele achar que eu sou assim mesmo, essa certeza inteirinha, que chega a doer igual soco no estômago. Eu me irrito com a minha mania de fazer meu sorriso parecer fácil demais, e fingir que estar no controle é moleza pra mim. Com a minha mania de sorrir pra ele e dizer que tudo vai ficar bem e que vamos sobreviver.
Porque eu sei que não vamos, sei lá... tem jeito não, de sobreviver assim. Porque não dá pra ficar junto. É um desacerto, é um desencontro, é um desespero e ninguém cede de lado nenhum. Nem nunca vai. E não dá pra ignorar, então fica confuso.
Ninguém sobrevive, eu sei. Mas tenho que fazer de conta que não sei. Quer dizer, não tenho não, ele que se vire com o abismo que ficar depois.
Ele que se vire com o meu cheiro e as minhas palavras decoradas, ele que se vire com o eco de risada que ficar na sala, ele que se vire pra arrumar a bagunça que sobrar depois.
E eu que dê conta também, de aguentar os olhos dele em cima de mim, de correr sozinha pra um lugar que eu não conheço, de dar um fim nos meus cremes e aprender a me arrumar só pra me sentir mais bonita, de arrumar outra pessoa pra me acordar no meio da noite.
Já que é assim mesmo, melhor isso. Ele lá e eu aqui, se amando de longe. Aliás, se amando só porque é de longe. E fazendo de conta que vamos sobreviver, mas cada um por sua conta. Não dá mesmo pra confiar em mim.

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