terça-feira, 1 de novembro de 2011

No caminho

Fazia semanas, talvez meses, e a sensação não passava, de modo que eu tomei as decisões necessárias, paguei o que precisava, depois enfiei minhas tralhas numa mochila e fui viajar.
O certo seria que todo mundo pudesse sempre fazer isso. Juntar suas coisas numa mochila e ir ver o resto do mundo, quando tá tudo errado e fora do lugar. Olhar para coisas novas ajuda a parar de prestar atenção ao que acontece do lado de dentro e era justamente o que eu queria. Eu não me suportava mais.
Liguei pro meu pai, que gostou da ideia porque no fim eu ia chegar numa igreja enorme e ia poder rezar bastante e minha vida religiosa seria finalmente retomada e eu ia voltar a acreditar em tudo que ele me ensinou com o maior amor do mundo e que eu infelizmente não acolhi como deveria.
Eu gostei da ideia porque eram quatro dias absolutamente sozinha, comendo quando me desse na telha e andando o quanto quisesse e vendo muita gente cansada e com esperança de chegar logo. Eu precisava ver esperança, porque a minha acabou faz um tempo e é muito difícil fazer qualquer coisa sem a fé de que tudo será melhor. Eu precisava ver a esperança dos outros pra voltar a sentir a minha.
Subi no ônibus querendo acreditar com todas as forças que faria frio, que haveria amigos, que não me daria a maior crise de solidão do universo quando eu estivesse numa trilha no meio do mato, sem nenhuma torre no celular pra ligar pra alguém que me salvasse de mim mesma. Eu às vezes sou bem cruel comigo e por mais que odeie isso não consigo fazer diferente.
Seguindo as famosas setas amarelas que apontam o Caminho de Santiago andei por trilhas que passavam no meio de aldeias, desciam colinas, acompanhavam rodovias, cortavam bosques amarelados pelo começo do outono. E pensei.
De todas as decisões que eu tomei na vida, a melhor foi ficar um tempo fora. A pior também. Cresci milhares de anos tentando entender a língua que esse povo fala, comer como eles comem, me inserir no modelo deles de trabalho e manter minha casa e minhas contas em dia. Foi a parte boa. Senti saudades terríveis dos meus pais, dos meus irmãos, dos meus amigos; não consegui nenhum trabalho que merecesse o esforço e acabei magra demais, preocupada demais, presa demais. Perdi uma amizade que eu adorava porque estraguei tudo no começo e ele estragou tudo no final. Sorri muito, claro. Chorei demais também, embaixo do chuveiro, tentando fazer com que a água lavasse um pouco da minha alma. Percebi que o lugar em que eu nunca quis estar na vida é justamente o lugar em que estou melhor, com pessoas que me fazem falta e atividades que me fazem bem.
Continuava andando e, quando parava  para almoçar - sozinha - lembrava com o maior carinho os almoços atribulados da minha infância, com meu pai tentando colocar ordem em outras quatro pessoas que tinham milhares de histórias pra dividir; pensava nos almoços no shopping com as minhas amigas pelo menos uma vez por semana; sentia o cheiro do almoço de domingo na minha avó.
Andar... não estamos todos andando também? Alguns sabendo que poderão descansar nos próximos quilômetros, outros esperando uma companhia que nunca chega. Andamos pensando nos nossos problemas, nas nossas histórias, na doçura dos sorrisos, na ferida aberta com faca, sem dó. Andamos calculando o salário, tentando encaixar as ideias, planejando o fim de semana, pensando de novo no por que de algumas coisas simplesmente não darem certo.
Foram 110km, mas poderia ter sido minha vida inteira. Não tive ataques de ansiedade nem fiquei pensando nos outros, foi um exercício de encontro com alguma parte de mim que insistia em pulsar em outros lados. Conheci pessoas, me despedi delas. Agradeci muito por poder estar ali. Fora isso rezei pouco, meu pai há de me perdoar. A igreja no final era linda e ver o incensário balançando a meio metro da cabeça dos fieis me parou o coração por uma fração de segundos. Eu estou viva. Eu sinto. E, por mais que me magoe e me desvalorize e me corroa por dentro de vez em quando, eu ainda gosto de mim um montão. Suponho que, no final, cada um está mesmo andando sozinho e não vale a pena esperar ajuda - ou amor, ou paz ou compreensão. Cada um se condena ou se absolve de seus próprios infernos. Se é justo ou não, não me cabe decidir. Costumo pensar que cada um será cedo ou tarde vítima de sua consciência. Engano. A minha me castiga muito, é verdade, mas não posso esperar isso dos outros. No final, o que você ganha por ser bom é só ser bom. Não há recompensas, não há vencedores.
Há o caminho, que ninguém sabe onde vai dar. E há gente boa e disposta a andar com a gente um pedaço longo ou curto, assim como há quem prefira continuar sozinho - talvez porque ter companhia significa ser responsável por outra vida, talvez porque a alma não esteja preparada para dividir seus mistérios, talvez porque estando sozinho ninguém pode te condenar por nada, não sei, mas é bom assim. A vida é boa. Eu andei 110km de fato, mas sinto que não parei. Voltar ao que antes me incomodava é uma continuação disso, porque às vezes também se erra o caminho, porque às vezes também se erram as almas, porque às vezes também se erra a sentença.
Eu não estou mais perdida, eu sei exatamente para onde estou indo e quem quero ao meu lado e isso é um alívio sem fim. Fica quem é importante ficar. Eu não cheguei, provavelmente não chegue nunca, porque cada passo pede sempre um passo a mais, mas sigo no caminho - que nem sempre é bonito e nem sempre é feio e às vezes também confunde e dá calos e faz cair, mas é que esse caminho definitivamente é o meu.

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